Doci Papiaçám

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Macau para Leigos


Não é exagero. Em Macau quase que se ouve as patacas a estrelejar no chão, maduras, acabadas de cair da árvore. Com uma economia galopante e uma população a aumentar quase na mesma medida, Macau ousa tornar-se, no panorama do mosaico económico asiático, uma espécie de dragãozinho hiperactivo.
Dragãozinho porque o mais visível dos problemas que Macau enfrenta conjuga-se com aquilo que Macau sempre foi: uma nesga de terra enclausurada entre a China gigantesca e o amarelo oceânico. A questão da dimensão tem sido resolvida (ou ao menos continuadamente solucionada) com assaltos premeditados ao mar, aterros sucessivos que com paciência, engenho e arte duplicaram ao longo dos últimos cem anos a superfície da cidade e acabaram com a separação física entre as ilhas da Taipa e de Coloane.
O processo de enxertia e de crescimento está longe de se dar por findo e novos aterros encontram-se já equacionados, com uma subsequente metamorfose no eixo urbano da cidade, com estaleiros já engendrados, demolições inevitáveis.
A mais polémica - e que muita água fará correr sob as três pontes do território - é a do edíficio da Assembleia Legislativa, construído nos últimos anos da administração portuguesa. Não confirmado e não desmentido, o projecto de demolição de um edifício consensualmente tido no território como moderno e funcional seria, noutros locais que não Macau (sobretudo pela simbologia que lhe está associada) factor inequívoco de celeuma.
Em Macau não o será tanto por várias razões. Uma é estrutural e prende-se com a própria fenomenologia da região: destruir para construir de novo é, de certa forma a mais vinculada característica de um território exíguo em compulsão constante.
Macau é o sempiterno estaleiro. Não há rua que se cruze ou rasgo do horizonte que se alcance em que uma grua não bifurque os céus ou um corte no alcatrão não melindre os passos dos transeuntes.
Outra assenta numa espécie de lógica do reconhecimento e envolve o império daquele que a história porventura guardará como o último dos mandarins de Macau.
Um mandarim e um mandarinato não institucionalizados mas ainda assim espessos e perceptíveis, decisivos no que concerne às linhas estruturais que orientam o futuro do território, até porque não há decisão pertinente que se tome sem que uma consulta avalizada a Stanley Ho seja feita.
Se é verdade que o processo de transição administrativa entre Portugal e a China consagrou direitos mais ou menos reconhecidos aos mais de quatrocentos mil habitantes do território, instituindo uma Região Administrativa Especial de Macau sob preceitos mais ou menos democráticos, não deixa de ser notado o peso que a figura do magnata Stanley Ho incute ao pulsar da vida quotidiana de Macau.
O império, os interesses e o poder do magnata ombreiam, em certa medida, com os próprios poderes do Executivo, numa coexistência que se quer pacífica, porque nem Macau subsiste sem o jogo, nem Stanley Ho seria o que hoje é sem Macau.
O anuência quer das pessoas, quer das próprias instâncias governamentais aos interesses da máquina do jogo é plausível e mesmo aceitável se for tido em conta o peso do sector na economia do território. Trinta por cento dos lucros dos casinos e das casas de Macau revertem por inteiro para os cofres do governo do território, que gere as finanças públicas a seu bel-prazer, usando sempre de diplomacia e de afabilidade para com a fonte aonde as próprias instituições soberanas enchem o cântaro.
Em Macau, tudo tem, de certa forma, a sua génese no jogo. Os salários dos funcionários públicos, os novos espaços urbanos, a calçada à portuguesa, os salários de uma facção considerável da população anónima da RAEM.
Mesmo algo tão sórdido como derrubar um símbolo de poder com a importância do edifício da Assembleia Legislativa perde força na ilação de uma probabilidade que se faz, neste contexto, mais que possível: a do edifício em questão ter sido, ele também, construído graças aos dinheiros do jogo e à visão vanguardista de Stanley Ho, rei e senhor do sector durante décadas.
A liberalização da indústria do jogo, com a abertura a operadores estrangeiros, e o desenvolvimento exponencial da China têm induzido um crescimento económico que bate, ano após ano, recordes sucessivos.
Ainda assim - o alerta é realista e são muitos os que dele têm feito alarme nos últimos tempos - é bom não esquecer a insuperável fragilidade com que a própria natureza exígua do território se auto- ameaça. E nesse sentido, não será mau perguntar por vezes: até quando estão os deuses predispostos a abençoar Macau?

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Cuza nôs sabe di?


Doci Papiaçám di Macau. A ressonância é a da erosão afecta aos dias, do vento que malha e carcome as arribas, que espanta as últimas folhas dos galhos cimeiros das árvores. O síndrome é o do esquecimento, mas também da perseverança. Porque o papiá di Macau é uma lingua que defunta nas páginas dos livros, um rasgo de um saber em transumância, uma parte do legado que a mundividência secular portuguesa - cada vez mais apagada - semeou pelo mundo.Mas o papiaçam é também, provavelmente, o mais ousado rasgo da herança macaense, do registo de um povo reinventado. Da mesma forma que no malaio influi o português, conservando consideraveis elementos portugueses, também a presença das sonoridades malaias no dialecto macaense é notória. O linguajar de Macau, que regista no seu estado de cristalização literária bastantes palavras dessa origem, apresenta ainda influências visíveis do canarim (a língua de Goa, de quem Macau dependeu politicamente durante séculos) e da sintaxe chinesa. Os diversos factores, combinados com a língua portuguesa, originaram o dialecto macaísta.É, portanto, um registo de fusão. De uma comunidade aberta, dinâmica, tolerante quanto baste para reinventar um arsenal linguístico que, se colorido fosse, faria inveja ao arco-íris.Este blog não se propõe miracular. Não é o seu propósito resgatar o dialecto macaísta da perpetuidade da sentença a que está votado ou arrojar-se a discutir com parecer e ciência o ecletismo de Macau. Não nos sobra nem a objectividade, nem o rigor, nem o engenho para descortinar com que métrica se alcançam os padrões de transumância, metamorfose e divergência afectos à história (erigida ad aeternum) da outrora cidade do nome de Deus, não há outra mais leal.
Não sendo um blog sobre Macau, este é um blog que se constroi a partir de Macau, com as nuances e implicações que um tal factor implica. Macau será porventura um tema recorrente neste espaço. Sem promessas, sem compromisso e sem amarras. Porque a única coisa a que este
Doci Papiaçám se propõe é, a ser como o dialecto, um registo de fusão. Aberto, intimista, preocupado. E por isso sempre em reinvenção constante.