Doci Papiaçám

quarta-feira, março 08, 2006

Macau por um canudo


Fala João Paulo Meneses de liberdade de expressão com avisada suspeita. Diz Meneses que Macau, os jornalistas acometidos e colaborantes, deixou definhar os preceitos da liberdade de imprensa e de expressão. Menos liberdade, hoje – intitula.
Com avisada suspeita se lhe é dada a resposta na medida do possível, com as cartas todas na mesa e sem os dados viciados.
Para a maior parte dos que em Macau fazem do jornalismo o seu mister, o nome de João Paulo Meneses é o de uma eminência parda. O nome aflora de tempos a tempos nas páginas de um diário, com uma certa estranheza, pois que ao nome se não associa um rosto por nunca tal semblante ter sido avistado numa conferência de imprensa do território nos últimos tempos.
Tal não lhe retira mérito algum, que nem sempre os olhos que vêm são os que com mais ciência narram. Mas torna-o suspeito, a Meneses, que se arroga dizer-se observador sóbrio e consciente de uma Macau onde naufraga de forma esporádica, julgando-se navegador experimentado.
Eu, que já fui crédulo e de credulidade me escaldei, desconfio sempre dos mui avisados relatos que outrém soletrou por outrém lhe haver dito.
Meneses faz lembrar o cronista medievo, a metade escritor e a metade saltimbanco, que ouviu a marinheiro envinharrado a narrativa fantástica das terras de Abarimon ou a intrépido peregrino a façanha do uruboros, a serpente que se engole a si mesma.
Só assim - como repassadas a saldo e quase mitológicas - se podem considerar ilações feitas tendo por base impressões de viagem, uma ou outra chamada telefónica, talvez uma conversa à mesa num dos muitos restaurantes da cidade.
Seja o artigo de Meneses um editorial, uma crónica ou um desabafo, nele outra fonte se não encontra que o próprio Meneses e tal, apenas por loucura ou umbiguismo, se poderá considerar bastante.
Até porque são graves as ilações nele premeditadas. Acusam, a letra grossa nas entrelinhas do que se lê, os jornalistas que trabalham em Macau de uma sórdida conivência com um eventual endurecimento do regime.
Minhas faço as palavras de Morais José. No mínimo é crassa a desilegância de classificar, sem provas, as condições de trabalho e de produção de companheiros de profissão.
É afirmar, de um modo pouco cavalheiresco, a pretexta e imaculada superioridade com que Meneses se parece ter em conta. Porque é isso que Meneses averba: que os jornalistas de Macau são uns vendidos (não deixa de sublinhar com pretenso dramatismo a dependência financeira dos orgãos de comunicação social que operam na RAEM) e que consentem e colaboram com uma minimização dos preceitos da liberdade de expressão. Minimização que, para bem dos profissionais que trabalham, de facto, em Macau, parece existir apenas na cabeça de João Paulo Meneses.
Cartas na mesa, como foi referido a princípio. Embora por Macau não ande há muito tempo, os nove meses que por Macau levo, disso estou certo, ter-me-ão permitido assistir a mais conferências de imprensa e cobrir, in loco, mais “estórias” sob a alçada da administração chinesa que aquelas que JPM terá acompanhado.
Tal não constitui uma vantagem. Mas constitui indubitavelmente uma diferença. A quem de juízo possa considerar se será, como Meneses diz, imodéstia, mas julgo também que é mais valia o estar-se de facto em Macau.
É que eu sou dos jornalistas da linha da frente, não perco tempo em conjecturas e conspiraçoes, só com factos. Sou dos jornalistas que (ainda) estendem o microfone e o caderno de apontamentos. E sempre que o fiz nunca me foi dito sobre isso não escreverás ou acautela-te com o que escreves. Nunca me foi vedada a resposta ou proibida a imagem. Nunca senti que não é jornalismo o trabalho que desenvolvo em Macau. Por isso nem calo, nem consinto.
E se pouco expressiva é a minha experiência, posso dar azo aos mesmos recursos subjectivistas de que Meneses se apetrecha para garantir que nunca ouvi, no que à administração chinesa diz respeito, uma palavra sequer de azedume e desconforto e desconheço os casos, os desabafos e as queixas a que JPM faz menção.
De resto, parece-me até que João Paulo Meneses acaba por dar azo a uma certa incapacidade de se afastar criticamente de um certo jornalismo comezinho que se faz em Portugal, onde políticos e jornalistas se apaparicam mutuamente, vivendo muitas vezes em fecunda concupiscência, atropelando limites éticos e deontológicos, embandeirando muitas vezes interesses não muito claros.
Por ser assim tão comezinho é o que o jornalismo português é recordista em trazer para as páginas dos jornais questões ao abrigo do segredo de justiça, em encontrar processos nos caixotes do lixo e vítimas e abusados um pouco por todo o lado.
Se a administração chinesa trouxe alguma coisa, essa alguma coisa terá sido (e tendo em conta os relatos que se fazem públicos de episódios vividos durante os últimos anos da administração portuguesa) a normativização das relações entre os meios de comunicação social – ao menos os portugueses – e o executivo de Edmund Ho.
Ho é diplomático e cauteloso, já que é pela diplomacia que a RAEM se permite subsistir de forma mais intrincada.
Numa das últimas deslocações ao exterior, o Chefe do Executivo sentou-se à mesa – a noite já bem entrada - com os jornalistas que o acompanharam pelo périplo. Falou, respondeu, deu conselhos. Foi assim que os jornalistas portugueses presentes tiveram oportunidade de saber, antes do próprio João Paulo Meneses ter escrito sobre isso, que a Escola Portuguesa de Macau não teria como destino o terreno da Taipa a ela inicialmente destinado.
Que o próprio Edmund Ho se havia reunido no final de 2005 com Stanley Ho e com Moitinho de Almeida e que as indicações resultantes desse encontro apontavam já para as conclusões anunciadas em Fevereiro.
Nessa noite falou sobre uma mão cheia de outras questões, algumas de interesse para a comunidade portuguesa. Só que o fez com a diligência de quem confia nos jornalistas e com a inteligência de quem impõe uma conversa informal, ao abrigo de microfones e de blocos, ancorado ao off the record como solução.
Off the record que pouco éticamente acabo de transpor. Apenas porque a revelação nada de novo traz ao universo jornalístico de Macau, debatidas e conhecidas que são as informações franqueadas, mas principalmente para que se afastem equívocos e fatias de presunção. É que estar, viver e questionar Macau em Macau não é bem a mesma coisa que imaginar Macau por um canudo.

quinta-feira, março 02, 2006

Vila Paraíso

Discalço ta vai fónte
Leonor pisá chám esverdeado
Quelê formosa, ta vai co cuidado.
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Na cabéça, unga pote piquinino,
Na mám di prata su támpa;
Cinta di chita vemêlo fino
Co saia di séda estámpada,
Colete di tudo dia vestido,
Más branco qui neve caído,
Quelê formosa, ta vai co cuidado.
.
Xale abrí, mostra piscoço
Co tránça di cabelo dorado
Prendido co listám sedoso.
Di bunita qui mundo ficá ispantado.
Caído nêle tánto doçura,
Pa dá graça su formosura
Quelê formosa, ta vai co cuidado.
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"Descalça vai para a fonte", versão macaísta de José dos Santos Ferreira
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Por aqui foi escrito (e mal) que o doce linguajar de Macau, registo de fusão e de quatro séculos de partilha e comércio linguístico entre povos, estaria confiado a um desaparecimento subtil, confinado que está a meia dúzia de volumes e a algumas centenas de páginas que se revisitam mais numa ascese de orgulho linguístico do que propriamente por qualquer pendor científico ou pragmático.
O que mantém as línguas vivas é, mais que qualquer acordo ou projecto de uniformização, o uso que lhes é dado. No recanto de mundo que viu nascer o patuá, o uso dado ao dialecto é escasso. Meia dúzia serão as pessoas que ainda recordam com natural agilidade um unchinho da língua.
Talvez por não ser ainda, em abono da verdade, de morte o estado de que se acomete o patuá. É, porventura, de um coma sereno. Um coma de que ressurge (tal como se sonhasse) a momentos esparsos, pela mão do Teatro Dóci Papiaçam di Macau. Dirigido por Miguel de Senna Fernandes (filho do escritor ), o grupo amador veste a alma da terra de forma original, honrando na tradição patuá, a memória de uma parte da mundividência da cidade.O sonho continua com "Vila Paraíso", a 25 e 26 de Março no palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Macau.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Macau para Leigos


Não é exagero. Em Macau quase que se ouve as patacas a estrelejar no chão, maduras, acabadas de cair da árvore. Com uma economia galopante e uma população a aumentar quase na mesma medida, Macau ousa tornar-se, no panorama do mosaico económico asiático, uma espécie de dragãozinho hiperactivo.
Dragãozinho porque o mais visível dos problemas que Macau enfrenta conjuga-se com aquilo que Macau sempre foi: uma nesga de terra enclausurada entre a China gigantesca e o amarelo oceânico. A questão da dimensão tem sido resolvida (ou ao menos continuadamente solucionada) com assaltos premeditados ao mar, aterros sucessivos que com paciência, engenho e arte duplicaram ao longo dos últimos cem anos a superfície da cidade e acabaram com a separação física entre as ilhas da Taipa e de Coloane.
O processo de enxertia e de crescimento está longe de se dar por findo e novos aterros encontram-se já equacionados, com uma subsequente metamorfose no eixo urbano da cidade, com estaleiros já engendrados, demolições inevitáveis.
A mais polémica - e que muita água fará correr sob as três pontes do território - é a do edíficio da Assembleia Legislativa, construído nos últimos anos da administração portuguesa. Não confirmado e não desmentido, o projecto de demolição de um edifício consensualmente tido no território como moderno e funcional seria, noutros locais que não Macau (sobretudo pela simbologia que lhe está associada) factor inequívoco de celeuma.
Em Macau não o será tanto por várias razões. Uma é estrutural e prende-se com a própria fenomenologia da região: destruir para construir de novo é, de certa forma a mais vinculada característica de um território exíguo em compulsão constante.
Macau é o sempiterno estaleiro. Não há rua que se cruze ou rasgo do horizonte que se alcance em que uma grua não bifurque os céus ou um corte no alcatrão não melindre os passos dos transeuntes.
Outra assenta numa espécie de lógica do reconhecimento e envolve o império daquele que a história porventura guardará como o último dos mandarins de Macau.
Um mandarim e um mandarinato não institucionalizados mas ainda assim espessos e perceptíveis, decisivos no que concerne às linhas estruturais que orientam o futuro do território, até porque não há decisão pertinente que se tome sem que uma consulta avalizada a Stanley Ho seja feita.
Se é verdade que o processo de transição administrativa entre Portugal e a China consagrou direitos mais ou menos reconhecidos aos mais de quatrocentos mil habitantes do território, instituindo uma Região Administrativa Especial de Macau sob preceitos mais ou menos democráticos, não deixa de ser notado o peso que a figura do magnata Stanley Ho incute ao pulsar da vida quotidiana de Macau.
O império, os interesses e o poder do magnata ombreiam, em certa medida, com os próprios poderes do Executivo, numa coexistência que se quer pacífica, porque nem Macau subsiste sem o jogo, nem Stanley Ho seria o que hoje é sem Macau.
O anuência quer das pessoas, quer das próprias instâncias governamentais aos interesses da máquina do jogo é plausível e mesmo aceitável se for tido em conta o peso do sector na economia do território. Trinta por cento dos lucros dos casinos e das casas de Macau revertem por inteiro para os cofres do governo do território, que gere as finanças públicas a seu bel-prazer, usando sempre de diplomacia e de afabilidade para com a fonte aonde as próprias instituições soberanas enchem o cântaro.
Em Macau, tudo tem, de certa forma, a sua génese no jogo. Os salários dos funcionários públicos, os novos espaços urbanos, a calçada à portuguesa, os salários de uma facção considerável da população anónima da RAEM.
Mesmo algo tão sórdido como derrubar um símbolo de poder com a importância do edifício da Assembleia Legislativa perde força na ilação de uma probabilidade que se faz, neste contexto, mais que possível: a do edifício em questão ter sido, ele também, construído graças aos dinheiros do jogo e à visão vanguardista de Stanley Ho, rei e senhor do sector durante décadas.
A liberalização da indústria do jogo, com a abertura a operadores estrangeiros, e o desenvolvimento exponencial da China têm induzido um crescimento económico que bate, ano após ano, recordes sucessivos.
Ainda assim - o alerta é realista e são muitos os que dele têm feito alarme nos últimos tempos - é bom não esquecer a insuperável fragilidade com que a própria natureza exígua do território se auto- ameaça. E nesse sentido, não será mau perguntar por vezes: até quando estão os deuses predispostos a abençoar Macau?

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Cuza nôs sabe di?


Doci Papiaçám di Macau. A ressonância é a da erosão afecta aos dias, do vento que malha e carcome as arribas, que espanta as últimas folhas dos galhos cimeiros das árvores. O síndrome é o do esquecimento, mas também da perseverança. Porque o papiá di Macau é uma lingua que defunta nas páginas dos livros, um rasgo de um saber em transumância, uma parte do legado que a mundividência secular portuguesa - cada vez mais apagada - semeou pelo mundo.Mas o papiaçam é também, provavelmente, o mais ousado rasgo da herança macaense, do registo de um povo reinventado. Da mesma forma que no malaio influi o português, conservando consideraveis elementos portugueses, também a presença das sonoridades malaias no dialecto macaense é notória. O linguajar de Macau, que regista no seu estado de cristalização literária bastantes palavras dessa origem, apresenta ainda influências visíveis do canarim (a língua de Goa, de quem Macau dependeu politicamente durante séculos) e da sintaxe chinesa. Os diversos factores, combinados com a língua portuguesa, originaram o dialecto macaísta.É, portanto, um registo de fusão. De uma comunidade aberta, dinâmica, tolerante quanto baste para reinventar um arsenal linguístico que, se colorido fosse, faria inveja ao arco-íris.Este blog não se propõe miracular. Não é o seu propósito resgatar o dialecto macaísta da perpetuidade da sentença a que está votado ou arrojar-se a discutir com parecer e ciência o ecletismo de Macau. Não nos sobra nem a objectividade, nem o rigor, nem o engenho para descortinar com que métrica se alcançam os padrões de transumância, metamorfose e divergência afectos à história (erigida ad aeternum) da outrora cidade do nome de Deus, não há outra mais leal.
Não sendo um blog sobre Macau, este é um blog que se constroi a partir de Macau, com as nuances e implicações que um tal factor implica. Macau será porventura um tema recorrente neste espaço. Sem promessas, sem compromisso e sem amarras. Porque a única coisa a que este
Doci Papiaçám se propõe é, a ser como o dialecto, um registo de fusão. Aberto, intimista, preocupado. E por isso sempre em reinvenção constante.